08 março 2010

As Contraditórias Ilhas Canárias

Serenas e violentas, luxuriantes e áridas, hostis e no entanto hospitaleiras, as imprevisíveis "Ilhas Afortunadas" espanholas são um mundo de esplêndidas surpresas




A Igreja de Femés, na Ilha de Lanzarote

As Contraditórias Ilhas Canárias

Tome pedacinhos do Havaí e do Oeste do Texas, junte o Monte Branco e os luxuriantes terraços de Maiorca, misture, e assim obterá essa estranha salada de surpresas e belezas chamada Ilhas Canárias. Começando num ponto do Oceano Atlântico a cerca de 100 quilômetros do Saara Africano, elas se estendem para o ocidente em um arco suave de 480 quilômetros, aproximadamente na latitude do Cairo, no Egito.
"Pombas pousadas no oceano", chamou-as um poeta espanhol. Falcões seriam uma palavra mais apropriada, pois podem ser violentas e implacáveis. Suas montanhas dentadas, indo de 685 a mais de 3.600 metros de altitude, têm um árido aspecto lunar. Várias só recentemente cessaram sua atividade eruptiva, e muitas praias nas Canárias são pretas de lava. Entretanto, apesar desses cenários áridos, as ilhas podem surpreender-nos com sua beleza serena. A maioria é animada por pássaros gorjeando em cada arbusto e cada árvore. Em todas, mas principalmente em duas delas—Lanzarote e Fuerteventura—somos subjugados por uma explosão de fragrância e colorido—suas flores. Nas ilhas há muito poucos insetos incômodos, não há serpentes, nem animais perigosos.
As Canárias, de fato, são um mundo de 7.500 km² de suaves contradições, onde tudo, com exceção do tempo, é deliciosamente confuso. Lembremo-nos de que elas foram e ainda são chamadas as Ilhas Afortunadas, mas são em número de 13; os lavradores locais cavam poços mais horizontais do que verticais, e são camelos e não mulas ou bois que puxam seus arados; os canários são originários de lá e ainda cantam nas árvores—mas as ilhas não têm seu nome por causa dos pássaros, mas por causa dos cães (do latim, canes) que os primeiros exploradores encontraram lá.



                  Ladainha Romântica. Os naturais das Canárias—mais de um milhão em número—só falam de duas estações: primavera quente e primavera fresca. Há pouca chuva. Os ventos alísios refrescam as ilhas no verão, o Gulf Stream aquece-as no inverno. Pode-se nadar nos 365 dias do ano. O ar, diz um antigo provérbio espanhol, é tão suave que impede a gente de morrer—um pensamento poético que recebeu apoio prático recentemente quando um cirurgião de Londres insistiu com seus colegas médicos para que mandassem seus pacientes de bronquite para as Canárias. Médicos suecos fazem precisamente isso há muito tempo e com excelentes resultados, informa ele.
As Canárias não foram "descobertas" recentemente, longe disso—há séculos que começaram a ser visitadas. Os romanos conheciam-nas, e o grande geógrafo Ptolomeu traçou uma linha através da ilha mais ocidental (hoje chamada Hierro), designando-a como o fim do mundo. Antes dos romanos foram os fenícios e os cartagineses; depois deles, quase todos os povos navegantes e piratas do mundo. Muitos dos habitantes que os visitantes aí encontraram eram uma gente alta, bem constituída, a que chamavam os guanches, que se estabeleceram nas ilhas séculos antes de Cristo. Mantendo-se na Idade da Pedra, os guanches viviam em cavernas, alimentavam-se de grão torrado, lagartos e mariscos, e mumificavam os seus mortos. A coragem foi a sua ruína: quando os espanhóis e outros invadiram as Canárias, os defensores lutaram com tão obstinada bravura que foram quase aniquilados. Os atuais ilhéus das Canárias são morenos e de estatura média.
Das 13 ilhas, algumas das quais não são mais do que simples rochedos, sete podem ser consideradas grandes. Seus nomes formam uma romântica e melodiosa ladainha: Tenerife, Grande Canária, La Palma, Gomera, Lanzarote, Hierro e Fuerteventura. Cada uma é um mundo em si, com sua própria fauna, sua flora, seu folclore e seu dialeto, acrescentados a um denominador comum: o ardor e independência espanhóis.


Para os festejos de Corpus Christi a população da Grande Canária desenha esplêndidos arranjos florais ao longo do trajeto da procissão religiosa.


                     Caminho Florido. As ilhas mais europeias são as mais populosas, Te-nerife e Grande Canária, as quais possuem todos os requisitos convencionais de uma estância de turismo, l>ons hotéis, lojas de souvenirs, piscinas e boates. Mas essa sofisticação é apenas superficial. A oitoquilôme-iios da costa encontram-se lugarejos c campos primitivos e intatos.
A maior cidade de Tenerife é Santa Cruz de Tenerife, capital de uma das duas províncias das Canárias. Foi daí que o Generalíssimo Franco, então Governador-Geral das Ilhas, saiu para liderar a sua revolução na Espanha. Foi aí, também, que Nelson perdeu um braço, arrancado por um tiro, e sofreu a sua única derrota. Mas a grande atração de Tenerife reside em sua exótica beleza natural, inclusive uma árvore considerada uma das mais antigas do mundo, a árvore-do-dragão. Escritores antigos e modernos têm celebrado essa árvore porque dela gotejava uma seiva que tem a cor e a consistência do sangue. O ponto culminante da ilha é o Monte Teide, co-linio de neve, com 3.706 metros de altitude, o pico mais alto sob a bandeira espanhola. Eleva-se de uma planície salpicada de pedras vulcânicas semelhantes a monumentos druídicos. Entre as altitudes de 1.800 e 2.400 metros os declives são animados pelos cantos das aves e revestidos de cores das flores típicas dessa montanha. A retama, uma flor alvirrosada, é especialmente interessante por seu perfume inebriante. Se a pessoa dormir com ela no quarto, com as janelas fechadas, pode acordar com vertigens ou coisa pior. Eu acordei com dor de cabeça, cambaleante, e não pude tomar o café da manhã, e a minha experiência, segundo me disseram, foi relativamente suave. Entretanto, as abelhas adoram-na. Na estação própria, centenas de caminhões cheios de colmeias sobem do vale, e, durante meses, milhões de abelhas exploram as flores e produzem um excelente mel.
Em maio, há enorme profusão de flores na ilha—prelúdio da mais bela procissão de Corpus Christi no mundo. A cerimônia realiza-se na antiga cidade de La Orotava, sob veneráveis balcões de teca esculpidos à mão. O principal acontecimento é um incrível tapete de flores, com 15 centímetros de profundidade, seis metros de largura e mais de um quilômetro de comprimento—caminho florido para os portadores do Santíssimo.
Na madrugada do dia santo, as flores—rosas, gerânios, lírios, mal-me-queres e aves-do-paraíso—começam a chegar de caminhão, carroças de mula e camelos dos campos e aldeias das montanhas. Na luz ainda vaga as flores são selecionadas e despetaladas por mulheres e crianças que então jogam as perfumadas plumas nos espaços indicados por moldes de madeira colocados lado a lado nas ruas que partem da catedral. Quando os moldes são retirados, o efeito é surpreendentemente igual ao de um tapete. O fato é que, quando vi aquilo pela primeira vez, perguntei a um homem que estava a meu lado onde fora tecido um tapete de tal comprimento. Ele riu e fez um gesto indicando o céu: "Lá em cima ... lá está o tecelão."
Então as portas da igreja se abriram e a procissão começou. Quando acabou, o esplendor de pétalas tinha sido reduzido a um campo salpicado de cores como um pintor abstrato poderia ter imaginado. Então foi a vez das crianças. Meninos e meninas correram a rolar sobre as flores pisadas, jogando-as uns contra os outros.

A Igreja de Pájara. Don Miguel de Unamuno descreveu esta igreja como tendo uma fachada inspirada por desenho helênico e asteca.


Linguagem de Assobio. A Grande Canária é outra ilha inundada de flores. Sua principal cidade, Las Palmas, é maior do que Santa Cruz de Tenerife e muito mais importante comercialmente. Com o fechamento do Canal de Suez, ela tornou-se hoje um dos mais importantes pontos de reabastecimento do mundo É também um grande centro comercial de pesca. Mas a mais famosa atração da Grande Canária é uma bela imagem da Virgem esculpida em madeira. Há mais de quatro séculos que esta Virgen del Pino recebe dos ilhéus devotos uma série de extraordinários mantos tecidos em ouro e prata com incrustações de pedras preciosas. Colecionadores desejosos de adquirir alguns desses mantos têm sido sempre repelidos.
La Palma é a ilha verdejante, a mais fértil de todas as Canárias, e a que tem o clima mais ameno. Ali, se a pessoa tiver sorte—como eu tive — assistirá ao estranho esporte da pértiga, no qual os homens, usando uma longa vara, descem as montanhas saltando de terraço em terraço. Não é jogo para principiantes. Todos os anos, disseram-me, alguns rapazes morrem ou ficam aleijados em suas tentativas para dominar a técnica.
Das sete ilhas principais a minha favorita é Gomera, um pedaço de terra de cerca de 24 quilômetros de lado a lado na parte mais larga, com uma população de 25.000 habitantes. Vai-se de barco até lá. Lembro-me da minha primeira chegada à ilha, tarde da noite. Perguntei ao comissário se poderia conseguir um quarto no hotel.
—Vou verificar—disse ele.
Colocou um dedo na boca e assobiou. O som que produziu parecia o canto de um pássaro. Imediatamente um gorjeio lhe respondeu vindo por sobre a água—o começo de um estranho diálogo pipilante na escuridão. Finalmente, o comissário disse-me:
—Já consegui. Vá ao café ... só há um. O garçom está à sua espera e o levará ao hotel.
Foi assim que tomei conhecimento do silbo, a linguagem de assobios que provavelmente só se usa em Gomera. O silbo é uma versão do espanhol em que se pode comunicar qualquer coisa a distâncias de oito quilômetros ou mais—uma solução engenhosa para um problema do terreno acidentado da topografia local. Gomera é uma ilha rochosa cortada por profundas gargantas, e muitas vezes leva-se uma hora ou mais subindo e descendo obstáculos para ir chamar um vizinho a 500 metros de distância. O silbo é tão rápido como um telefone e bem mais barato.
O silbador coloca um ou dois dedos ou uma falange na boca, encosta a ponta da língua nos dentes e começa a assobiar, pronunciando as palavras como numa conversa comum. O som tem apenas uma vaga semelhança com a palavra falada—mas é alto e compreensível. Seria difícil transmitir outro idioma pelo sistema do silbo, mas o espanhol presta-se admiravelmente a isso porque tem apenas poucos sons vogais e uma variedade não muito grande de consoantes. Resultado: os gomerianos assobiam piadas através dos vales, e os pastores contam histórias através de quilômetros de distância.
O único fato histórico de que Gomera se vangloria é o de que Colombo ficou na capital de San Sebastián por um mês antes de partir da Espanha para a sua grande viagem da descoberta em 1492. Por que fez isso ninguém sabe; mas a parada, que o levou para mais de mil quilómetros ao sul do seu ponto de embarque original, tornou o seu desembarque nas Caraíbas inevitável. Tivesse ele velejado diretamente de onde estava previsto, teria desembarcado onde é agora o sul dos Estados Unidos, e a história do mundo poderia ter sido diferente.
Estranho Fascínio. De todas as ilhas, Lanzarote, com sua desolada paisagem lunar, é a mais curiosa._Suas praias são geralmente negras. E um lugar silencioso no mar, onde não cantam aves e poucas flores vicejam. Apesar de tudo, tem um estranho fascínio.
Como as outras Canárias, Lanzarote surgiu do mar em resultado de uma série de erupções vulcânicas. A última ocorreu há mais de 200 anos,  mas a terra continua tão quente que há lugares em que se pode fritar um bife alguns centímetros abaixo da superfície. Com pouca chuva, a ilha tem pouca água; camelos substituem os cavalos e as mulas pelo fato de poderem resistir longos períodos sem beber. Além disso, o lavrador de Lanzarote cobre sua terra com lava preta até a uma profundidade de 15 a 30 centímetros para preservar a pouca chuva que cai. O trabalho desenvolvido é prodigioso, mas a recompensa é uma extraordinária colheita de tomates e frutos, especialmente uvas, usadas para fazer vinho. Produz o Canário e a Malvasia, que os elisabetanos bebiam como Malmsey, e foi num barril desse vinho, segundo Shakespeare, que o futuro Ricardo III afogou o irmão.
Outra peculiaridade da agricultura: as figueiras crescem em buracos de um metro ou mais de profundidade e, como proteção contra os ventos, são circundadas por muros como de poços. Assim, a gente se abaixa para colher os frutos—outra confusão.
Mas o verdadeiro atrativo de Lan-zarote não consiste no modo estranho que tem de cultivar as coisas, i nas no seu povo, que é dos mais hospitaleiros do mundo. Quando nos despedíamos, o nosso motorista não só se recusou a aceitar gorjeta, mas ainda presenteou minha mulher com um pequeno ramo de flores. Numa ilha em que as flores são dificílimas de conseguir, aquilo era a suprema cortesia.
Não admira que as Canárias hoje atraiam cerca de 200.000 visitantes anualmente; cerca de 6.500 estrangeiros ficaram como residentes permanentes. Mas duvido que mesmo essa "redescoberta" mude as qualidades especiais das Ilhas Afortunadas. Muitas das ilhas menores estão virtualmente intatas e até mesmo Tenerife e a Grande Canária—as mais frequentadas—têm longas extensões de litoral e um belo interior que muitos forasteiros nunca viram. Se você gosta de surpresas, é tempo de ir lá.

George Kent - Revista Seleções do Reader's Digest, Setembro de 1969