15 abril 2008

O dever da memória, por Abrão Slavutzky

O dever da memória, por Abrão Slavutzky*

A história da humanidade começou com o dever da memória. O primeiro dever foi a construção de uma sepultura como homenagem a um ente querido morto. A criação do túmulo, ocorrida há 50 mil anos, foi um divisor de águas entre a natureza e a cultura, uma vez que o ritual funerário não é natural, pois os animais, quando morriam, ficavam na superfície. O túmulo é também um sinal de identidade lingüística, pois o morto é individualizado, o que foi decisivo na construção da linguagem. A perda recebe então uma marca na terra e uma marca mnêmica que vai construir o que virá a ser a realidade psíquica. A tragédia Antígona, de Sófocles, representa a importância desse ritual: o rei Creonte proíbe o enterro de Polinice. Antígona, sua irmã, insistiu em enterrá-lo, mesmo sendo morta por isso.

O dever da memória evoca uma dimensão religiosa, no sentido de relegere (Cícero), que é o de tornar a ler o passado. Este é indispensável à manutenção da unidade de um grupo; na Bíblia, por exemplo, a ordem de lembrar é onipresente através da palavra Zakhor. Aprendi com meu pai a frase com que encerrava nossas conversas: "O passado ainda é o passado". Mas se o passado pesar muito, o sujeito fica melancólico, pois a sombra do objeto perdido cai sobre o Eu. Nesse caso, a memória da perda não alivia, mas gera uma tristeza constante.

Hoje, por dever de memória do valor da liberdade, recordo dois eventos: 68, o ano que retorna, quando milhares de jovens lutaram por uma humanidade mais justa. Fiz parte daquela juventude otimista, a geração 68, que imaginou poder transformar toda a sociedade. Vinte anos depois um dos líderes daquela rebelião, Dany Cohn-Bendit, fez um balanço daqueles anos no livro Nós que Amávamos tanto a Revolução. Alguns ideais ficaram distantes, entretanto 68 retorna porque abriu espaços para mudanças efetivas de valores nas relações humanas: hoje somos mais livres.

O outro acontecimento foi o Levante do Gueto de Varsóvia, iniciado no dia 19 de abril de 1943, há 65 anos. Essa rebelião, feita por judeus, foi a primeira revolta civil contra o nazismo. Centenas de jovens mal armados desafiaram o exército alemão durante um mês, preferindo a morte na luta do que nos campos de extermínio. Hoje é considerado uma das epopéias da humanidade, como a rebelião dos escravos comandada por Spartacus em Roma ou a dos negros liderada por Zumbi aqui no Brasil.

Temos o dever da memória com os que enriqueceram a sociedade com a solidariedade e a compaixão. Não só com os heróis famosos, mas com nossos familiares, muitos vindos de terras distantes, que nos deram um nome, estudos e confiaram no porvir. Um dia perguntei a Cyro Martins sobre seu amor pelo passado na sua ficção, onde se refere ao seu pai Bilo e seus amigos. Ele me disse que a memória eram as raízes do escritor. Lembrar aqui o amigo Cyro, a geração 68 e os jovens do Gueto de Varsóvia é criar pontes invisíveis pelas quais o passado transita para o presente.

*Psicanalista